Vivemos tempos (e há demasiado tempo, diga-se) em que impera a "doutrina da graça" não só na religião, mas também na psicologia profunda dos homens. A "doutrina da lei" ninguém a quer ouvir. Vivemos constantemente a ilusão de que temos direito a isto e aquilo só porque sim, só porque ouvimos dizer que o temos. A sensação de "fácil" e de "gratuito" (um derivado de "gratia"), traduz-se na pouca vontade generalizada de se conquistar com esforço, e na noção de que algo "deve ser" nosso independentemente do merecimento. Apesar disso a "doutrina da graça" não deixa de ter grande valor e encerrar grandes valores. Apenas o paradoxo "ter direito à graça" não faz, nem nunca fez, nenhum sentido.
O problema é quando consideramos que a graça é tudo o que precisamos; é quando achamos que estamos abrangidos por ela e que podemos dispensar a lei do merecimento. A maioria das pessoas só se preocupa em receber sem pensar sequer no custo das coisas: emagrecer sem esforço com a dieta milagrosa; ganhar dinheiro sem esforço num golpe de sorte; cirurgia sem dor; pagamentos suaves; morte assistida; auto-ajuda infalível num disco óptico... Não que eu seja contra estas coisas; são tudo coisas boas, mas criam a sensação em nós que podemos ter tudo a custo zero. Essa sensação, essa ilusão que se instala no nosso íntimo é que deve ser entendida e combatida. Ainda que não seja popular devemos "pregar" a nós mesmos a doutrina da lei sete dias por semana, e deixar a doutrina da graça na bruma dos dias maus, nesses dias que não dependem de nós e do nosso braço; nessas alturas em que a esperança é tudo o que há e não se pode idear lei alguma que nos valha.
Só o que se conquista é realmente nosso. Só o esforço consciente e empenhado acrescenta valor à nossa alma. É pelo "levantar" do inconsciente e questioná-lo; é "acordando a Medusa" que vencemos esses fantasmas invencíveis, pois esta vitória (de nós contra nós mesmos), nunca é dada, é conquistada com coragem. Neste domínio, goste-se ou não, vigora a lei e a graça fica de fora.
«Não é teu o que a fortuna fez teu»
- Publílio Siro ou Séneca, Ep. a Lucílio
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