quinta-feira, 29 de abril de 2010

Requiem

Infelizmente, não posso, como Mozart, compor a minha própria marcha fúnebre. Mas se pudesse escolhê-la (e digo isto porque os mortos, obviamente, não escolhem nada), seria este poema cantado por F. Mercury. No entanto, é em boa hora que nós, os vivos, temos o privilégio de nos iludirmos acerca da vida e da morte, e desengane-se quem, inadvertidamente, queira ver neste post um humor mórbido: a nossa apreciação é a dos vivos; pensarmos na morte, falarmos dela, idealizá-la e aos outros mundos, é uma tarefa para os vivos. A morte é um assunto dos vivos, ponto final. Esta é uma das muitas coisas belas que tem a vida, porque os mortos, esses... é que já não comem nem bebem! Apreciem a exaltação da vida que há neste poema! A poesia é tudo!

«There's no time for us
There's no place for us
What is this thing that builds our dreams yet slips away
from us?

There's no chance for us
It's all decided for us
This world has only one sweet moment set aside for us

Who wants to live forever?
Who dares to love forever?
When love must die

But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips
And we can have forever
And we can love forever
Forever is our today
Who wants to live forever?
Who wants to live forever?
Forever is our today

Who waits forever anyway?»

Queen, Who Wants to Live Forever
http://www.youtube.com/watch?v=pC4ZOxpu2rs

terça-feira, 27 de abril de 2010

Cornos e cornadas

«My girl, my girl, don't lie to me,
Tell me where did you sleep last night»

Nirvana, My Girl
http://www.youtube.com/watch?v=ZXzVLxa7vLU

Love and Murder Balad

«From the first day I saw her I knew she was the one
As she stared in my eyes and smiled
For her lips were the colour of the roses
They grew down the river, all bloody and wild»

Nick Cave & Kylie Minogue, Where The Wild Roses Grow
http://www.youtube.com/watch?v=chF244LWWqg

Vai

«Pois vai! Pois vai, sozinho, até que o Sol se ponha,
Se entenebreça o azul, as aves emudeçam,
E tremam as estrelas, na medonha
Solidão, onde, ao fim, desapareçam»

José Régio, A um Poeta

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Still not crazy enough

«Too much love will kill you
Just as sure as none at all
It'll drain the power that's in you
Make you plead and scream and crawl
And the pain will make you crazy
You're the victim of your crime
Too much love will kill you
Every time»

Queen, Too Much Love Will Kill You

domingo, 25 de abril de 2010

Morto de fome...

um samurai palita os dentes mesmo sem ter comido nada.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Desabafo

Escusam de mo lembrar porque eu sei-o bem: quem está nesta vida para aprender, crescer e fortalecer-se, não pode nunca queixar-se de pancada a mais - não tem sequer esse direito. Se o objectivo for esse, mal estaríamos se não levássemos pancada amiúde. Sim, eu sei disso. É próprio do métier dar e levar e, ao levar, levantar-se e prosseguir. Deste ponto de vista reconheço que devo estar agradecido à vida e às oportunidades que ela me dá. Se o chão não oferecesse resistência como é que aprendíamos a andar? Se os halteres não puxassem na direcção contrária como é que o músculo crescia? É verdade que não tenho direito a queixar-me, mas só por hoje, abram-me uma excepção que estou feito num bolo.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O querido e o desprezível como ficção útil, a sacralidade inerente das coisas e o amor super-moral

Entre o reconhecimento e o desprezo está implícita uma noção de valor, de moral e de apreço. Todas as coisas estão sujeitas a uma escala de valoração, muito ou pouco definida, que determina a sua sobrevivência ou extinção. É conhecida a asserção de Nietzsche, na Genealogia da Moral, de que o homem é "aquele que mede", asserção formulada a partir de uma certa etimologia da palavra.
Nos vários códigos morais que o homem criou, isto torna-se muito claro: as 10 mandamentos de Moisés são proibições de origem dita divina, mas de objectivo e aplicação social como forma de legislar o funcionamento harmonioso de um grupo. A questão que se coloca é: a utilidade de uma coisa determina o seu valor? Não, porque não há nada sem utilidade. Tudo o que está inserido nesta enorme "rede" de existência, está-o sempre imbuído de espírito cooperativo (em macro-escala), se bem que a um nível mais estreito possa estar em conflito. Porém, até mesmo as destruidoras forças de conflito desempenham um papel nada desprezível na grande economia Universal - as forças em conflito também são criadoras.
Assim, a questão da utilidade de uma coisa, do ponto de vista da economia do Universo, é questão que nem se coloca: quer se goste ou não goste; quer seja benéfico ou danoso para o social, quer seja desejada ou não, não há uma única coisa que tenha valor nulo - as nossas aspirações e noções sociais de desejável é que assim as classificam. Tudo o que existe está sancionado por uma "sacralidade inerente" à sua própria existência e, deste ponto de vista, é inclassificável e amoral. A única coisa de valor zero é aquilo que não existe. Não significa isto que possamos dispensar os nossos códigos, mas apenas que há um "código" mais justo e mais vasto. Provavelmente até, se o homem fosse erradicado da Terra (ele que tanto gosta de valorar) seria reduzido precisamente ao valor nulo da não-existência, e esse desaparecimento não deixava de ter um impacto zero e de ser uma irónica justiça auto-sentenciada: o julgador é julgado; o ganancioso é preterido; o caçador é caçado; o discriminador é discriminado. Tudo o resto se manteria indiferente. Precisamente porque o "medidor" já não existiria, eis a prova que a utilidade não determina o valor.
Nesta coisa dos juízos há uma grande macaquice, que é um referencial de sabedoria, não divina mas humana, que pretende fazer crer que conhece o valor das coisas. Felizmente que o valor das coisas não varia com os juízos e se mantém, desafiando a nossa ignorância. A justiça da época condenou Galileu e as suas teorias físicas e, independentemente de elas serem certas ou erradas, é o juízo sobre elas que está em causa, não a Terra ou o Sol. É a nossa estreiteza moral que nos julga e condena; é a nossa generosidade que nos iliba; é o nosso amor que nos salva. Fazer algo em nome de alguém que não nós alijando a responsabilidade é a marca do escravo moral. E o único acto verdadeiramente moral é aquele que se faz com consciência e envolvimento, mas isso já é um acto de liberdade e entrega que dispensa todo e qualquer preceituário - a moral é transcendida, não obstante ser cumprida ou não - porque o acto verdadeiramente moral é feito apesar dela e não por causa dela.

«Aquilo que se faz por amor, faz-se para além de Bem e Mal» - Nietzsche

Porquê? Porque o Ser está comprometido e preenche de sangue e sentido o esqueleto frio da moral - confere-lhe vida e ultrapassa-a.

domingo, 18 de abril de 2010

Exortação à unidade - tudo para todos

You say love is a temple
Love a higher law
Love is a temple
Love the higher law
You ask me to enter but then you make me crawl
And I can't be holding on to what you got
When all you got is hurt

One love, one blood, one life
You got to do what you should
One life with each other
Sisters, brothers
One life but we're not the same
We get to carry each other, carry each other
One

U2, One

A cola do Universo

O amor é a cola do Universo.
Já todos ouvimos dizer que "o amor é cego" ("quem feio ama bonito lhe parece, etc.). Escusado será dizer o que isto significa: o amor é capaz de distorcer as nossas percepções e de ver coisas onde não as há. Logo, a nível da exactidão dos sentidos é como se vê. Mas, para além disso, o amor também é burro. Quando alguém se sacrifica por outro e se coloca em segundo lugar, é sinal de pouca inteligência (e que diríamos de uma mãe que dá a vida por um filho?). Isto de perdermos para outro ganhar não é coisa lá muito esperta, temos de concordar. "O amor é reciprocidade (dar e receber)" - outro mito. O que mais se vê por todo o lado é gente que ama e não recebe nada em troca. Que quer acreditar numa imagem idealizada que fizeram do outro, e o outro, para lhes pagar, dá-lhes aquilo que tem de pior: desprezo, rejeição, desrespeito, maus tratos de toda a ordem, etc. E o amor, é um sentimento? Falso. Amor é dádiva. Tudo neste Universo existe em função da dádiva. Mas é preciso entender isto: o pólo fundamental da dádiva - o único sobre o qual devemos derramar a nossa atenção de estudantes - é o de quem dá. Dar-se é um conceito absoluto e completo, independentemente de haver quem receba. Dar-se, entregar-se (chavões mal entendidos do dia-a-dia), é algo que jamais será entendido por quem continua a não querer aceitar "dádiva" por si só; sem contra-partida. Esse Cristo, que muitos crêem ser Deus, o que recebeu ele dos homens, desde o momento em que creiamos que morreu por eles? cuspidelas e vergastadas. Que recompensa recebeu Camões dos portugueses, ele que tanto os amou? Morreu cheio de fome e pústulas! O que é que ganhou Van Gogh com a arte que nos deixou, ele que em vida não conseguiu vender um único quadro e vivia das esmolas do irmão? Digamos que o amor anda mal pago. Mas aí é que está: o amor não tem nada a ver com pagamentos. Amar é dar-se. É entrega e dádiva. E isso é tudo; fim de questão.
Seria ambicioso demais pôr aqui com todas as letras que tudo no Universo segue esta regra, a da dádiva (desde o Sol à abelha-mestra na sua colmeia), porque seria arrogante da minha parte apresentar um Universo antropocêntrico sem explicar que tudo o que nele há está-se nas tintas para o ser humano. Que importa ao Sol que nos aqueçamos com ele, ou à abelha que gostemos do seu mel? Mas a dádiva deles não é, por isso, menor - é total - porque para eles a questão de quem recebe não se põe; muito menos a de receberem de volta.

«o sábio deve agir mas, por completo, da acção liberto e puro, só com o fito de manter o mundo coeso» - Bhagavad-Guitá 3, 25

«O Brahma, que impregna tudo, permanece eternamente baseado em sacrifício» - Bhagavad-Guitá 3, 15

«Porque duram o céu e a terra para sempre? Eles não vivem apenas para si. É esse o segredo da sua durabilidade» - Tao Te Ching, estrofe 7

sábado, 17 de abril de 2010

A justificação

I was born, I was born
To be with you in this space and time
After that and ever after
I haven't had a clue only to break rhyme
This foolishness can leave a heart black and blue

I was born, I was born to sing for you
I didn't have a choice but to lift you up
And sing whatever song you wanted me to
I give you back my voice from the womb
My first cry it was a joyful noise

Only love, only love can leave such a mark
But only love, only love can heal such a scar
Justified, till we die you and I will magnify
The magnificent, magnificent

Only love, only love can leave such a mark
But only love, only love unites our hearts
Justified, till we die you and I will magnify
The magnificent, magnificent, magnificent

Magnificent, U2

O olhar-dentro como caminho

«O grande mestre segue a sua própria natureza e não os aparatos da vida» - Tao Te Ching, estrofe 38

Existem mil e um apelos no quotidiano, mil e uma maneiras de distracção, de entretenimento, e mil e uma maneiras de nos esquecermos de nós mesmos. Frequentemente perseguimos sonhos e objectivos que não são nossos na expectativa de agradarmos a alguém, de sermos reconhecidos, de sermos aplaudidos pela sociedade. Tudo isto são coisas que consomem toda a nossa riqueza existencial, e por riqueza refiro-me ao tempo de vida, a única riqueza real e justamente distribuída.
Quantas vezes poderá ter acontecido que o homem chegue ao final da vida e sinta tê-la desperdiçado? Talvez muitas, se bem que todos somos especialistas em nos justificarmos e a encontrar argumentos para a nossa própria apologia. Provavelmente é necessário um caminho áspero de sofrimento e angústia para pararmos um pouco e nos obrigarmos a reflectir (biologicamente parece ser essa a função da tristeza, do luto, por exemplo). Por outro lado, talvez haja a necessidade de uma certa sensibilidade para esse "olhar-dentro" que falta à maioria. Existe, é preciso dizê-lo, uma mestria própria em sermos capazes de nos olharmos, de nos ouvirmos, de nos conhecermos a nós mesmos. Não que ela seja dada, mas fruto de uma busca empenhada e atenta. Ao fim de um tempo de andarmos às cegas, vamos sendo capazes de ver o nosso interior com mais clareza e a entendermos a pouca utilidade de perseguirmos objectivos que não são nossos, coisas emprestadas a que nos agarramos como uma onda que se desfaz, e a que nos apegamos hoje para as perdermos amanhã. A grande direcção vem de dentro, sabendo nós também a certa altura, que "dentro" é apenas uma metáfora, pois ele não tem lugar. A voz genuína desse deus que não tem Céu mas todos os lugares, e que não usa boca para falar, nem o ar para se fazer ouvir, é a voz que nasce da Harmonia. A sintonia connosco e a não-transgressão da justiça e da Natureza das coisas é a via para que o ouvido interno possa escutar a direcção correcta e não se perca. Quando nos falta a luz do conhecimento claro - e a quem é que não falta? - temos de usar esse órgão mais sensível de percepção: a sensibilidade do coração, para podermos seguir a nossa própria natureza. Os aparatos da vida não são o nosso caminho, são os arbustos que o ladeiam. A nossa própria natureza é a estrada que conduz ao palácio da Paz.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A verdade na arte: a verdade no artista

A verdade existe? Que verdade? Do ponto de vista da abstracção não faz sentido falar de "a verdade", uma vez que ela é um valor lógico de conformidade entre uma concepção e uma realidade. Mas, que aspecto da realidade? Porque a realidade como um todo dispensa bem qualquer enunciado - ela é. Não se pode dizer que a realidade é verdade; não faz sentido. Então, ou a verdade se refere ao enunciador e ao que ele entende, ou ao enunciado. Neste caso o enunciado pode ser falso e quem o profere ou está enganado, ou pretende enganar. De toda a maneira o ónus da verdade recai sobre o enunciador e, ou o valida, ou o acusa. Assim, a verdade está naquele que a enuncia, e este, para os nossos estudos, é o ponto principal. Deixamos com os juristas a verdade legal, e para os cientistas as provas de facto, que uma só coisa nos interessa, que é: a nossa expressão de verdade, de genuinidade; e fazer dela um assunto pessoal.
Quando falamos de arte, pode parecer que nos referimos a ideias fantasistas e delirantes, pejadas de todas as mentiras e universos ficcionais. E, em parte, assim é. Mas que relação tem a arte com o artista? Ela é uma forma de expressão ilimitada (daí os seus incontáveis artifícios), da sua essência interior. Ela é o veículo de expressão que materializa em letras, cores, sons, o que o artista tem dentro de si e quer mostrar; aquilo que tem para dizer e clama por um "corpo" de expressão tangível. Ora, neste sentido, pode-se facilmente entender que a perfeita identificação entre o que o artista quer dizer (o que sente), e aquilo que ele diz, é a eterna busca de todas as artes. Quando ele transmite com honestidade e genuinidade aquilo que sente, ele alcança a verdade de si para consigo mesmo. É isto que todo o artista faz ou tenta fazer. Se o não consegue, quase sempre não é por não tentar, é porque não domina ainda as suas formas a ponto de que sejam um reflexo perfeito do seu íntimo. Assim sendo, é ele que se julga em si mesmo se alcançou "a verdade" ou não. Esse é o seu trabalho diário e o seu tormento.
E voltando ao início: qualquer tolo pode dizer "a verdade não existe!" Mas o artista sabe que sim e mostra-no-la de todos os ângulos e cores infinitas - todas essas figuras de estilo que servem para no-la explicar. Se nós chegamos lá ou não, é connosco. Ele não pode fazê-lo por nós.

«Trabalho, lima e tempo» - Horácio, Arte Poética

Como é que se domestica um elefante? Quando ele é jovem e tem pouca força, atamos-lhe a pata com uma corda a uma árvore enorme. Por mais força que faça, ele não se consegue libertar. Quando é adulto e tem muita força, basta atá-lo com uma volta de cordel a um tamborete, que ele nem sequer vai tentar libertar-se.
Como é que se domestica uma águia? Apanha-se a cria muito pequena, e esconde-se-lhe sempre um segredo que só nós sabemos: que ela, se quisesse, poderia sobreviver sem o ser humano, e que não precisa dele para nada. Pode-se deixá-la voar que ela volta sempre.
Como é que se domestica uma pulga? Coloca-se a pulga dentro de um frasco pouco maior que ela. A pulga, de início salta, mas bate sempre de encontro à tampa. Até que aprende que saltar é inútil. Então, podemos tirá-la do frasco e pô-la em cima de uma mesa que ela já não se consegue mover daí.
É assim que uma condicionante é um Destino. É assim que julgamos ser uma coisa quando somos outra. O "arquitecto" fez bem o seu trabalho, ao fazer-nos crer que a nossa definição acaba onde começam as nossas limitações, a ponto de nem tentarmos olhar para "o lado de lá". Será que Buda nasceu Buda? Ele fez-se Buda; ele limou cada centímetro de ferro das grades da sua prisão.

Nota: Para esclarecimento de arquitecto e o Nirvana de Buda, estes foram abordados em posts anteriores.

Definições subtis

Gostar de uma coisa é desejo. Querer uma coisa é vontade.
Recusar uma coisa de que se gosta é poder.
Querer uma coisa sem gostar ou é loucura ou é sabedoria.

O poder sob vontade

O poder é viciante, e vicia ao ponto de perdermos o controlo sobre ele. Nessa altura é o próprio poder que comanda a vontade e a vontade é comandada. O único factor de regulação do poder nasce da liberdade, pois se a vontade não for expressão de liberdade é porque está corrompida. A vontade livre é a mais alta manifestação de poder; só ela pode entender o que significa:

«As raízes do mal são as paixões humanas. Por dirigir seu intuito somente no sentido de obter vantagens, o homem inferior não nota quando aquilo que lhe é vantajoso é errado, nem percebe quando aquilo que não lhe traz nenhum benefício é correcto» - Tengu-Geijutsu-Ron

As paixões humanas são as raízes do mal porque elas dispensam tudo o que é vontade em geral: elas alimentam-se com uma energia própria e induzem à acção a despeito de tudo. Só a vontade livre pode recusar um benefício quando ele é errado; só ela pode agir correctamente sem que haja nada a lucrar.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O poder é a vontade

I will never faint
I refuse to lose, I refuse to fall down.

(versos de Patti Smith, Piss Factory)

Esvaziar e voltar a encher - o fole da progressão

«Trinta raios convergem para o meio mas é o vazio do centro que faz avançar o carro. Molda-se a argila para fazer vasos, mas é do vazio interno que depende o seu uso. Uma casa é fendida por portas e janelas, é ainda o vazio que a torna habitável. O Ser dá possibilidades, mas é pelo Não-Ser que as utilizamos» - Tao Te Ching, estrofe 11

Existimos porque ocupamos um lugar vago para existirmos. Se vemos alguma coisa ao longe é porque há espaço livre entre nós e o objecto. Se podemos escutar um som é porque o ar está suficientemente livre de ruído para o podermos escutar (e a mesma coisa para o ruído). O lugar onde a própria Terra paira e gira é um "tecido" de espaço e tempo, tal como postula a teoria da relatividade, tecido esse que está livre enquanto ela lá existe.
É claro que o vazio é apenas um dos lados da questão: se não houvesse aparelho auditivo, nada poderíamos ouvir; se não houvesse visão, nada poderíamos ver; e a possibilidade de compreensão advém de um meio de compreensão próprio, mas só poderemos compreender se o lugar do entendimento não estiver já ocupado. É este o efeito danoso de todo o dado adquirido que não é questionado. Precisamos de "ocupar o terreno", é certo, para nos podermos orientar, mesmo quando as nossas concepções não passam de preconceitos (e todos os preconceitos têm, afinal, uma função), mas se queremos interrogar determinado conhecimento, temos de colocar esse lugar "à disposição" para algo novo e mais acertado.
Despojarmo-nos do conhecido, pô-lo em causa, é desconfiar dele e esvaziar o lugar preenchido. Por que razão o faríamos a não ser por uma ambição e um desejo tais que só podem ter lugar desde o momento em que a alma sente o vazio próprio de quem não está bem servido? Todo o vazio contém poder e tudo aquilo que o ocupa determina-se pelas suas limitações e possibilidades. É interrogando que se encontra respostas; é caminhando que se alcança; é duvidando que se chega à certeza. Lutando connosco mesmos contra os erros e as imperfeições é que nos aperfeiçoamos. Atacando-as, questionando-as, havemos de alcançar uma perfeição maior. Questionar é um risco? Pois seja, mas não há outra via. Lutar connosco exige que o façamos com coragem, humildade, equilíbrio e confiança.

«Forte na sua confiança de um melhor conhecimento das coisas, o chefe deve manter-se firme como uma rocha, contra a qual vem-se despedaçar a onda. É um papel difícil. Aquele a quem a Natureza não dotou de um coração volúvel, cuja competência não foi ainda sancionada pela experiência militar e pelo treino, deverá ter como regra abandonar a via dos receios e orientar-se na direcção da esperança, mesmo a despeito da sua convicção íntima. Só esse meio lhe assegurará um verdadeiro equilíbrio» - Clausewitz, Da Guerra, Livro I, capítulo VI

«Pedi [vazio], e dar-se-vos-á [cheio]; buscai [vazio] e achareis [cheio]» - Lucas 11:9

Este é o fole da progressão: sístoles e diástoles do coração-caminhante.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A demanda do dia claro

«O que um homem "aprende" é na realidade apenas aquilo que ele descobre ao tirar as envolturas da sua alma (...) O progresso no conhecimento é o resultado do processo de descobrir» - Swami Vivekananda, Karma-Yoga

Descobrir é retirar o que está a mais - a cobertura - aquilo que esconde por baixo de si algo que não pode ser visto. Digamos que na sabedoria oriental este seja um conceito comum, em que, rejeitando a ênfase na "aquisição" (de conhecimento), o discípulo tem antes a tarefa de tirar o que está a mais, aquilo que oculta e obscurece o que é essencial. Mas será isto dizer que após esse processo iremos deparar-nos com algum deus todo-poderoso? Não. Apenas connosco próprios na nossa finitude, nas nossas forças e limitações. Porém, um Eu já não iludido em fantasias e falsos conceitos. Essa nudez com que nos vemos, após nos despirmos das roupagens, das falsas fés e dos enganos protectores com que nos revestimos, é um núcleo-essência onde está inscrito o nosso nome junto às nossas possibilidades. Esse núcleo é o nosso eu mais íntimo, a nossa natureza própria, a própria alma exposta à luz da nossa visão clara.
De certo modo, verdade seja dita, não é este o processo habitual com que nos confrontamos: de modo muito generalizado mais procuramos adquirir e acrescentar, do que descobrir, desvelar os véus que nos cobrem. Tal como o viajante que teme morrer de frio, revestimo-nos de muitas capas e coberturas onde já não nos conseguimos ver e reconhecer, perguntando-nos: "o que é feito de mim?", "onde fui eu parar?", sem podermos discernir o lugar onde estamos. Não que seja errado fazê-lo, se a alma assustada receia pela própria vida e se quer esconder de elementos exteriores impiedosos. Porém, o percurso inverso pode ser feito, desde o momento em que a nossa auto-consciência, livrando-se progressivamente do medo e fortalecendo-se, for conseguindo "descascar" as suas envolturas. É um processo de coragem e auto-enfrentamento, e seria perigoso dizer-se que o resultado será este ou aquele: aquilo que está oculto não pode ser conhecido até que seja visto totalmente. Esse "Eu-Si-Mesmo" que então se revela poderá ser diferente do que imaginámos, e é por isso que esta tarefa é um processo e uma caminhada lenta: para que possamos ir habituando os olhos a uma luz mais forte e não cegarmos prontamente. No fim (se houver fim), iremos deparar-nos apenas connosco, um "eu" que desconhecíamos, um novo "eu". Que visão! É a verdade que nos fala de dentro de nós. Não se trata já do velho reflexo em espelho, mas da sua visão directa, intuitiva, quer dizer, sem mediação, sem atalho, sem apoio ou ponto operativo. Esse é o verdadeiro conhecimento - como um relâmpago que cai e rasga a Terra - ele sabe sem pensar que sabe; ele conhece sem precisar de saber que conhece. É um dia claro com mil pontos de luz.

«Se a aprendizagem não é conhecimento intuitivo, ela é inútil» - Tengu-Geijutsu-Ron

Your life by the fingertips

If you've been getting close to a fall
And, without time to react, you've been falling down
Fast, towards the endless deep abyss;

If God, on a joking moment, would grant you
That you could grab yourself for a while yet
In its borders, so you could live a little bit more;

How long would you hang on?
Ten minutes? Half an hour?

GET A GRIP !!!

Vertigem e superação

«É por amar a vida e por agarrar-se a ela que nela se sofre. Quando o homem está angustiado e agitado em todas as fibras do seu coração, como no Inferno dos Três Mundos, isso prova apenas que está encarando a vida de modo erróneo» - Tengu-Geijutsu-Ron

Amar e agarrar-se à vida é ter apego às coisas transitórias que nela há, todas as coisas que, como num caleidoscópio, aparecem e desaparecem contra a nossa vontade jogando connosco um jogo de gato e rato, hipnotizando-nos de prazer e dor. Face a esse vaivém de agrado e desagrado em que nos achamos, somos vítimas de nós mesmos e das nossas ilusões quando nos deixamos seduzir pela sensação que partiu levando a alegria consigo, e por esta outra que agora chegou impondo-nos tristeza. E no meio de toda esta transformação somos nós que somos jogados por ela e lançados como dados nas mãos do jogador sem ter direito a opinião.
Esse sofrer como no Inferno dos Três Mundos designa um estado de suprema angústia que surge depois de nos termos agarrado a uma certa sensação de bem-estar que desejámos permanente, e de termos acreditado nas suas promessas. Então ela desilude-nos, deixando-nos sós, a braços com um vazio, saqueados na expectativa de felicidade duradoura.

«No objecto de cada um dos órgãos dos sentidos residem atracção e repulsa; não caias sob o seu poder, porque são brutais salteadores de estrada» - Bhagavad-Guitá, 3, 34

Caídos neste estado, espoliados das nossas melhores expectativas , abeiramo-nos de um abismo da alma, terror de vazio, e esse sofrimento diz-nos uma coisa apenas que devemos escutar: estamos a encarar a vida de modo erróneo. Precisamos de nos inteiriçar de corpo e espírito, de acordar desse transe hipnótico com que o abismo nos seduz e dar um passo atrás para achar o caminho de volta a lugar seguro. É lá que está a nossa origem, a nossa terra firme, aquela a que temos de constantemente regressar depois da decepção. Ainda que, repetidas vezes, caiamos vítimas do canto dessas sereias, é nosso dever voltar ao porto, lugar de origem, reencontrarmo-nos connosco próprios. Quando isto acontece a paz é o sinal que o nosso espírito encontrou descanso (ao menos por ora); encontrámos o rosto familiar, esse amigo perdido que somos nós mesmos.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O Eu como oponente

«Quando dois oponentes se encontram, aquele que não tem um inimigo triunfará seguramente» - Tao Te Ching, estrofe 69

Qual é o objectivo da "nossa Paz"? Porque devemos conciliar-nos após essa "grande batalha" contra nós mesmos, ainda que várias batalhas se sucedam a várias pazes? (Porque no nosso íntimo haverá sempre lugar a uma batalha). Nesse conflito, teatro de uma guerra fratricida, todos os recursos se esgotarão sem um armistício. O homem em que o conflito interior não é gerido e governado sabiamente, como general-em-chefe de uma nação instável, verá todos os seus nervos esticados partirem-se, depois reconstruídos, hemorragias internas, cicatrizes saradas, ferida em cima de ferida numa cidade arrasada erigida em escombros sem terraplanagem, no que representa a sua beleza moral (anímica) retorcida, o sentido da própria estética desfigurado, e a noção de certo e errado corrompida em golpes falhados. Naquele que tem em si um inimigo, em que os dois de si trocam insultos, acusações e ameaças de vingança, tornar-se-á fácil descobrir o ponto de ruptura, pior ainda, nem sequer será preciso golpeá-lo, pois aí - num espírito que a si mesmo se devora num incêndio ateado por dentro - basta apenas deixá-lo arder e até de empurrão se poderá abater as suas muralhas.
Mas o que é esta Paz? O que é não ter um oponente?

«Quando existe um Eu, também existe um oponente. Se não existe um Eu, é como se num espelho estivesse sendo reflectida a parte boa ou má, a sinceridade e a falsidade daquilo que surge diante dele, até em seus mínimos pensamentos. Não se trata de algo reflectido a partir de um Eu; é unicamente um reflexo daquilo que aparece ali» - Tengu-Geijutsu-Ron, p. 50

Esta limpidez de espelho com o seu claro reflexo é propriamente ser uno, inteiro, cidade em paz.

Tu espreitas-te

«o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu: és tu próprio que te espreitas nas cavernas e nas florestas» - Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

Quo Vadis? - Onde Vais?

Todos os comportamentos animais têm um objectivo, uma função. Agimos de determinadas maneiras com vista a um fim, e a base dos nossos comportamentos, muito mais biológica que intelectual, impõe umas poucas necessidades que têm de ser servidas. A fome, o sexo, o sono, a sobrevivência em geral, têm uma importância tal nos nossos actos e escolhas, que quase não se consegue entender o que qualquer "jogo" abstracto poderá ter a ver com elas. É claro que poderíamos fazer uma análise sócio-económica de apoio às condições que levam a isso - as condições-base asseguradas. Mas não é tão simples assim, porque em muitos casos elas não estão presentes nem garantidas. Aqui teria de se fazer um outro raciocínio: uma coisa que vem compensar outra, como um substituto sublimador. E é isso, de facto, a arte. O poder de sublimação (da agressividade, por exemplo), da actividade intelectual reside em redireccionar um outro apelo, apaziguando-o e silenciando-o. Desta maneira, aparte as vantagens sócio-económicas (raras) de uma obra comercialmente bem sucedida, o que levará alguém a acreditar e a perder tempo com isso? E contra todas as probabilidades? Um psiquismo deslocado, redireccionado. Não é assim em todos os casos, é certo, mas sim numa imensa maioria. O próprio intelecto (abstraindo-nos, por agora, das funções do corpo), tende a ocupar-se da resolução de problemas concretos e tangíveis, não de meros "jogos" sem finalidade. Como se poderá levar a mal a perseguição generalizada da recompensa do prazer, ou ver nela algo tido por "básico", "primário" ou "instintivo"? Esta é a verdadeira direcção e sentido do nosso "ser-de-barro", nenhuma coisa tem de estranho; ela é a via autêntica, a mais legítima, a mais central, e a primeira de um leque de escolhas; a mais percorrida, a mais apelativa, a mais segura e a mais bem paga. Os "caminhos secundários" que se afastam dela numa rota periférica e divergente - estas palavras incluídas - caem na categoria de psiquismo deslocado - radiais, pior, caminhos de terra batida em que facilmente nos perdemos e, sozinhos, não encontramos lugar para descansar.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Acaso e improviso - a solução criativa

«O gladiador toma a decisão na arena» - Séneca

É de inestimável valor que entendamos o papel do acaso. Mesmo que possamos ter o controlo de inúmeras variáveis numa dada situação, os imponderáveis estarão presentes, sem excepção. Digamos até que quanto mais controlada é a experiência maior deve ser a expectativa de imponderáveis cruciais. Se pensarmos que há coisas que, por sorte ou por azar, podem desviar determinado rumo, melhor poderemos encará-las sem surpresa e afrontá-las friamente. Na arena da vida não podemos saber o que aí vem numa maioria de casos e, se é da arte da estratégia prever todo um jogo, é da arte da bravura estar pronto para improvisar. No palco único e letal de uma arena o gladiador destituído de criatividade irá deparar-se com os golpes como coisas que se abatem sobre si sem saber de onde. O gladiador criativo, por seu lado, está aberto a todas as possibilidades, preparado para sentir o espanto da novidade sem "gelar". Este "enfrentar o inusitado" com fluidez é a marca dos que se adaptam; é a característica única dos que sobrevivem: adaptação, assimilação, aprendizagem, ultrapassagem de um patamar, superação de uma fraqueza inicial.

domingo, 11 de abril de 2010

Para um amigo

No meio do sofrimento, por entre os gritos abafados da alma, se ouvirá a melodia doce do sucesso. Ela diz-nos da Harmonia, esse equilíbrio perfeito ante o abismo; ela conta-nos, na sua canção, de uma eternidade de gelo e silêncio, cume nevado de força pura. Nesse lugar onde o lamento não chega (nem tão pouco as canções ébrias), a origem da força diz-nos que a saída do Inferno em nós só pode ser achada de olhos enxutos.

«Entre espinhos nascem rosas»
- Amiano Marcelino, Rerum Gestarum Libri

sábado, 10 de abril de 2010

Tirados da terra

«Sou homem; nada do que é humano tenho por estranho» - Terêncio

Como seres humanos participamos todos de um substrato comum. A relação entre "homo" (o homem) e "humus" (a terra), denuncia em boa medida a nossa origem, a nossa ligação a esse "pó" de que somos feitos. De facto, aparte todas as diferenças de cor da pele, de condição social, de educação ou cultura, todos os homens estão sujeitos à mesma mortalidade, às mesmas fragilidades, aos mesmos sonhos e desejos, e às mesmas aspirações. É preciso que não se pense que estamos livres deste ou daquele erro, deste ou daquele vício, ou isentos de um determinado destino. Na verdade, se somos "tirados da terra" por igual, todas as possibilidades estão em nós; tudo, em potência existe na nossa alma. Desde o filho do juiz ao filho do ladrão, as suas almas têm de ser educadas e aperfeiçoadas num sentido ou noutro. O filho do ladrão pode ter todas as virtudes se assim quiser, e o filho do juiz pode ser ladrão apesar da sua educação com mais recursos. Os vícios da alma e as suas virtudes determinam em mais larga medida o nosso destino, o nosso comportamento e as nossas possibilidades de vencer um desafio do que qualquer dos "bons presságios" com que nascemos, sejam a família, a educação ou a cultura. Por isso temos o dever de cultivar e desenvolver as boas características da alma, as suas virtudes, a confiança, o bom-ânimo, a persistência, a justiça, e precaver-nos dos seus vícios com uma vigilância constante.
"Nada do que é humano tenho por estranho" deve ser uma advertência para não julgarmos estar livres dos erros mais comuns, desses erros que julgamos nada terem a ver connosco, porque a raiz de "humilde" é a mesma de "humano". É assim que devemos ser: de olhos postos na virtude mas sem esquermos a nossa natureza essencial.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os outros - Inferno de espelhos

Os outros são o espelho onde nos podemos ver de um ângulo impossível. Eles são a metáfora, a ilustração do real. É nos outros que nos podemos ver. São eles que têm a pista que falta. Mas para isso temos de estar na disposição de ver; temos de estar na disposição de olhar; temos de ter a capacidade de olhar no espelho olhos nos olhos; temos de vencer o horror e a desilusão de percebermos que estamos a ver em nós próprios coisas que não imaginávamos, como se essa imagem contasse uma verdade que nos custa aceitar, que não reconhecemos em nós, que nos diz - que nos acusa - do que pensámos estar longe, coisa só dos outros, nunca nossa.
Ora, neste processo, o seu papel enquanto espelhos, é fundamental. Na crítica dos outros, na sua visão, nas suas reacções, podemos ver-nos. É fácil dizer-se: "a crítica dele é injusta". É mais difícil dizer: "o que é que poderá haver de verdade nesta crítica?".
A auto-consciência nasce da crítica. Da auto-consciência nasce a auto-crítica, e uma auto-crítica razoável e ajustada leva ao auto-conhecimento. Para tal requer-se uma alma forte. Vencer, neste sentido, é vencer o horror dessa visão. Manter-se a pé diante dela sem desfalecer, nem negar, requer coragem. É então que começa o caminho para a auto-transformação. Olharmo-nos é admitir que "nós somos o outro"; aceitarmos aquilo que vemos é propriamente "vermo-nos"; transformar o que vemos é vencermo-nos.

«O Inferno são os outros» - Jean-Paul Sartre.

E o único caminho para o Céu.

A lei e a graça

Vivemos tempos (e há demasiado tempo, diga-se) em que impera a "doutrina da graça" não só na religião, mas também na psicologia profunda dos homens. A "doutrina da lei" ninguém a quer ouvir. Vivemos constantemente a ilusão de que temos direito a isto e aquilo só porque sim, só porque ouvimos dizer que o temos. A sensação de "fácil" e de "gratuito" (um derivado de "gratia"), traduz-se na pouca vontade generalizada de se conquistar com esforço, e na noção de que algo "deve ser" nosso independentemente do merecimento. Apesar disso a "doutrina da graça" não deixa de ter grande valor e encerrar grandes valores. Apenas o paradoxo "ter direito à graça" não faz, nem nunca fez, nenhum sentido.
O problema é quando consideramos que a graça é tudo o que precisamos; é quando achamos que estamos abrangidos por ela e que podemos dispensar a lei do merecimento. A maioria das pessoas só se preocupa em receber sem pensar sequer no custo das coisas: emagrecer sem esforço com a dieta milagrosa; ganhar dinheiro sem esforço num golpe de sorte; cirurgia sem dor; pagamentos suaves; morte assistida; auto-ajuda infalível num disco óptico... Não que eu seja contra estas coisas; são tudo coisas boas, mas criam a sensação em nós que podemos ter tudo a custo zero. Essa sensação, essa ilusão que se instala no nosso íntimo é que deve ser entendida e combatida. Ainda que não seja popular devemos "pregar" a nós mesmos a doutrina da lei sete dias por semana, e deixar a doutrina da graça na bruma dos dias maus, nesses dias que não dependem de nós e do nosso braço; nessas alturas em que a esperança é tudo o que há e não se pode idear lei alguma que nos valha.
Só o que se conquista é realmente nosso. Só o esforço consciente e empenhado acrescenta valor à nossa alma. É pelo "levantar" do inconsciente e questioná-lo; é "acordando a Medusa" que vencemos esses fantasmas invencíveis, pois esta vitória (de nós contra nós mesmos), nunca é dada, é conquistada com coragem. Neste domínio, goste-se ou não, vigora a lei e a graça fica de fora.

«Não é teu o que a fortuna fez teu»
- Publílio Siro ou Séneca, Ep. a Lucílio

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A inutilidade da arte: como a da Natureza

Qual é a utilidade da arte? E precisa de ter uma?! Qual é a utilidade da Natureza? Terá, decerto, alguma, se pensarmos naquilo que ela nos dá, a nós, humanos. Assim como o Homem acha utilidade na fauna e na flora, elas, por seu lado, acham utilidade entre si, reciprocamente, numa teia cruzada, inter-dependente, no que é a ecologia do planeta em geral. Digamos que o Homem será até o elemento mais nocivo nesta economia planetária e o de contribuição mais pobre - é o que menos lhe dá e o que mais a esgota.
Se pensarmos em tudo o que sai das mãos do Homem - da tecnologia à gestão de resíduos tóxicos e ao mundo financeiro - quase tudo fede a putrefacção, ao nosso sepultamento anunciado enquanto espécie. Uma só coisa brilha nesta nossa existência - e essa é a arte. A arte sim, porque a arte, para sê-lo de facto há-de estar cheia da harmonia que falta à tecnologia; há-de respirar de justiça tal como não há na finança; e há-de ser mais limpa que qualquer sistema de reciclagem. De tudo o que fabricamos nada tem um nível tão grande de rentabilidade, de aproveitamento. Porque a arte é inútil (não serve um propósito). É aí que reside o seu valor. Que utilidade tem a floresta antes de o Homem lá chegar? Nenhuma, tal como a arte. A floresta não serve um propósito por muitos que lhe encontremos pois, será que ela vive em função de? Claro que não. Se ela é massacrada e destruída isso não é culpa sua. Se a arte tiver utilidade, isso é com cada um de nós. Aquilo que cada um faz dela é lá consigo - a arte não tem nada com isso.

Sabedoria é kung-fu

Para não restringir demasiado o âmbito deste estudo, como se nada mais houvesse para além dele, diremos que desta virtude tão cara aos antigos se disse a certa altura: «(...) a mãe de todas as coisas boas é a sabedoria» (Cícero, As Leis). Na verdade, quer seja na acepção de "bom-senso" (que nos orienta as decisões); na de "erudição" (conhecimento profundo de um tema); na de "moderação" (acepção estóica); ou na de "discernimento" (percepção intelectual em geral); a sabedoria, independentemente da sua aplicação, é sempre louvada ao estilo de Cícero, como "a mãe de todas as coisas boas".
De facto, sempre seriam poucos os louvores para enaltecer essa capacidade adquirida por longo esforço que faz questão de delegar em nós a responsabilidade pelo nosso destino ("o sábio depende de si mesmo" - Medieval). E esta vertente de virtude adquirida (não-inata), é essencial que seja aceite e compreendida. Ela é produto de um esforço prolongado, tal como o termo chinês "kung-fu" indica: "kung-fu" quer dizer "perícia adquirida com esforço". O que quer dizer que toda a mestria - seja ela qual for - fruto de uma busca incessante, de uma entrega total, cai no âmbito daquilo que "kung-fu" significa. Assim é a nossa busca - de olhos fitos no futuro, sem jamais nos queixarmos do seu preço:

«Nenhum esforço; nenhum sofrimento; nenhuma condição é demasiado dura de se aceitar quando o objectivo é vencer. Uma atitude destas só se pode adquirir quando o desejo de vitória está bem arreigado nos sonhos e ideais do praticante» - Bruce Lee, Tao of Jeet Kune Do

Sabedoria - o escudo

«É próprio do sábio o não fazer nada de que possa arrepender-se [prudência], nada fazer contrariado [sem liberdade], mas tudo com brilho [envolvendo-se], constância, gravidade [ponderação], honestidade» - Cícero, Tusculanas

Nesta citação de Cícero ilustra-se convenientemente a atitude correcta - sábia - ao enfrentar esse nosso inimigo dentro de nós mesmos: um respeito prudente. Em todo o confronto, seja ele qual for e de que natureza for, esperar o adversário com respeito e sem essa arrogância própria dos fanfarrões, é a única atitude aceitável para quem quer vencer. Um demasiado à-vontade é quase sempre a característica daqueles que não estão prontos; daqueles que não meditaram no seu "templo"; que não avaliaram (ver Sun Tzu, cap. I, 28); desses que vêm para o "campo de batalha" com o espírito desprotegido. Assim, fiados na falsa fé que "Deus-proverá", caem na primeira emboscada, vítimas do seu próprio laxismo.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Liberdade / Libertação

"Liberdade", pelo uso corrente que tem, não permite perceber na justa medida o que significa realmente. Não vou, por isso, tocar nessa abstracção enquanto tal, mas sim como atributo relativo à alma humana. Dizia Cícero que «Somos por conseguinte servos da lei, a fim de podermos ser livres» (Defesa de Cluêncio). Claro, esta é uma afirmação política, mas, mais do que isso, encerra uma verdade geral: o serviço liberta. E esta é a verdadeira acepção que nos interessa aqui: a de "libertação".
"Ser livre" pode ser entendido como "aquele que não tem laços", "aquele que nada o prende". Ora a liberdade não exclui os laços, os vínculos - é a ultrapassagem disso. E a palavra "libertado", para este efeito, é mais exacta e convém-nos mais, do que "livre". Libertado é aquele que atingiu a liberdade por algum tipo de esforço. Livre designa um estado, erroneamente tido por invariável. Libertação é o produto de um processo de luta - apela mais à ideia de um trabalho consciente e orientado para um objectivo.
No âmbito do nosso tema maior - vencermo-nos a nós mesmos - a libertação das grilhetas dominadoras que nos paralisam (os "fantasmas" da nossa alma), é resultado do nosso esforço empenhado. Não quer dizer que não existam laços; não quer dizer que estejamos livres do nosso dever como se fôssemos inconsequentes. Quer dizer que o cumprimos com liberdade, e cumprir com liberdade é cumprir, não com medo do castigo, mas por vontade (vontade livre). É cumprir, não com vista a uma recompensa, mas com o coração. É comum dizer-se "dei de coração" como que a dizer-se "dei-o em liberdade"; não coagido pelo medo, nem pelo interesse próprio. Este é o verdadeiro sentido de "liberdade". Aquele que é escravo do medo ou do interesse não age por liberdade, pois eles escravizam-nos a um propósito. Vencer-se a si mesmo é um processo de libertação progressivo, concreto e consciente, fruto de uma auto-gestão sábia.

«É essa a natureza da multidão: ou serve humildemente [escravidão] ou domina com arrogância [tirania]; a liberdade, que fica no meio, não sabem construí-la moderadamente nem mantê-la» - Tito Lívio

«Mas ao varão, viver da verdadeira virtude animado cumpre,
e com coragem apresentar-se inocente perante o adversário.
É essa a liberdade, a que dá um peito puro e firme» - Énio

(Citações latinas em Estudos de História da Cultura Clássica, Cultura Romana, Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Fides - confiança

Fides, do latim "fé", "crença", "garantia", "lealdade, "confiança", foi personificada como deusa, e tinha um templo no Palatino. A virtude fides, de onde "fiel" e "fidelidade", é mais do que um conceito moral, e muito mais do que um conceito judaico-cristão, como se vê. É na fides romana que está a origem da garantia do direito romano; é nessa confiança que Roma conquista o mundo conhecido e instaura a sua lei; é nessa garantia de igualdade que se funda o direito de cidadão romano; é nessa lealdade para com os conquistados que Roma se impõe, primeiro pela força, é certo, mas posteriormente, se mantêm, ocupa e reina sobre os vencidos.
Mas fides é mais que uma virtude política, é o núcleo central do psiquismo saudável. Mais do que uma necessidade para a credibilidade dos Estados, a confiança é uma absoluta necessidade para a alma de cada um de nós. Se não tivermos confiança em nós mesmos; se não acreditamos, primeiro que tudo, em nós mesmos e na nossa capacidade de ultrapassar a adversidade, então vamos agarrar-nos a quê? Se, por outro lado, depositamos toda a nossa confiança em outrem, noutra qualquer força fora de nós, o que podemos esperar dessa "cegueira"? Confiança em si próprio (auto-confiança) é uma daquelas virtudes da alma que não se impõe pelo seu atractivo - ela é um "bem essencial" da alma. É nela que se funda a capacidade de sacrifício (e logo a recompensa do sacrifício), e é por ela que nos levantamos uma e outra vez da derrota e nos "obrigamos" a acreditar na nossa vitória. A fé, neste sentido, é-nos indispensável.

Pio e ímpio - conhecer é reconhecer

Pietas, no latim, é a devoção respeitosa para com os deuses, antepassados, a pátria e os pares a quem devemos respeito. É o assumir de uma responsabilidade inerente ao vínculo que nos liga a alguém; é devoção e obrigação (por exemplo, filial); é a observação do dever, do compromisso. O ímpio, por seu lado, é aquele que não cumpre com o que lhe é devido; é aquele que não respeita os seus laços; que desdenha o tributo pela dádiva; que não reconhece um favor que recebeu sem mérito.
Não somos nem a origem, nem 100% autores do nosso ser. Uma multiplicidade de causas que nos escapam colocou-nos "à frente" da nossa existência, existência que, não obstante, controlamos em grande parte. O pio, no entanto, sente-se grato por ela e por ter a oportunidade de lhe presidir. Ao reconhecer o seu "ser" dependente ele reforça laços essenciais para, ao menos, se poder situar no mundo e saber quem é. É assim, reconhecendo, que ele se conhece. É só na base estável e humilde do reconhecimento que ele pode "firmar pé" para o passo seguinte: conhecer-se a si mesmo e, mais que tudo, conhecer o seu próprio coração, o "Sião" da sabedoria. Não é certamente por acaso que se diz: «O temor do Senhor é o princípio [é o ponto de apoio] da sabedoria» (Salmos 111:10). O ímpio está excluído deste Caminho.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Arrancar ervas-daninhas

«Terminadas as hostilidades, acima e além de ter relações harmoniosas, há boas razões pessoais para acelerar o processo [de sarar o ódio]. Uma delas é biológica: agarrar-se ao ódio ou guardar ressentimentos tem graves consequências fisiológicas. Estudos sobre a pós-hostilidade em pessoas revelam que cada vez que pensam sequer no grupo que odeiam, os seus corpos respondem com raiva acumulada; enchem-se de hormonas do stress, fazendo subir a pressão arterial e diminuindo a eficácia imunológica. Tudo indica que quanto mais frequente e intensamente esta sequência de raiva contida se repete, maior é o risco de consequências biológicas duradouras. Um antídoto é o perdão. (...) o perdão não significa desculpar um acto ofensivo, esquecer o que aconteceu ou reconciliarmo-nos com o perpetrador. Significa encontrar uma maneira de nos livrarmos da obsessão com a dor.» - Daniel Goleman, Inteligência Social, Parte 3, capítulo 21

O ódio adoece-nos e enfraquece-nos. Debilita-nos desde o momento em que somos seus escravos. Talvez possa haver algum tipo de recompensa emocional na dor do ressentimento (como aliás em todas as emoções do repertório humano), mas nenhuma emoção deve ser um fim em si mesma, mas sim móbil de acção ("emoção" tem raiz em motere, "pôr em movimento"). Essa é a sua função original. Quando ela nos droga e nos obceca o pensamento, é altura de nos livrarmos dela, de a combatermos, de a eliminarmos, de a erradicarmos de dentro de nós. O Código de Honra da Legião Estrangeira diz a certa altura: «Tu [legionário] combates sem ódio nem paixão». Porque deve isto ser assim? Porque o ódio mina o intelecto, exaure a força, rouba a capacidade de decidir correctamente, e cega-nos a vista para os caminhos que levam à vitória.
Vencermo-nos, as mais das vezes, é arrancar as ervas daninhas que se alimentam do sangue do coração.

«[Eu, Átma - o Espírito Universal] Sou a força dos fortes, se tal força não lida com desejo nem paixão» - Bhagavad-Guitá, lição 7, estrofe 11

Átma fortalece onde não se acha paixão, ódio incluído.

«Na alma que é impermeável
aos pensamentos e às emoções
nem o tigre encontra espaço
para cravar as suas garras»
- Tradução interpretativa de "A Taoist Priest", Bruce Lee, Tao of Jeet Kune Do (provavelmente inspirado em Tao Te Ching, estrofe 50)

domingo, 4 de abril de 2010

Ousa enfrentar-te!

«O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.» - I. Kant, Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo?, 1784. In A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70

Longe de partilhar desta acusação de Kant (como se a coragem intelectual estivesse justamente distribuída), gostava apenas de destacar a necessidade da coragem intelectual para afrontarmos os mais negros recessos da nossa personalidade, quartos medonhos de que não nos atrevemos a abrir a porta com medo de os encarar e vencer. Porque a pior ignorância não reside no desconhecimento da matemática aplicada ou da filosofia transcendental de Kant, reside no desconhecimento de nós próprios. A palavra de ordem, no entanto, vale também neste caso: Sapere aude! - Ousa saber! - Ousa questionar-te! Ousa desafiar-te! Ousa olhar-te a ti mesmo nos olhos! no espelho da alma! É necessário ousar, atrever-se. Quem é derrotado mas, mesmo assim, se levanta e torna a dar combate, perdura e supera.
Uma descrição bem mais poética (e bem mais precisa) desta "luta" a que me refiro, está em "A Voz do Silêncio":

«a nenhum guerreiro voluntário da feroz luta entre o vivo e o morto [o eu inferior e o Eu superior], e a nenhum recruta, poderá jamais ser-lhe negado o direito de entrar na Senda que conduz ao campo de batalha. Porque ou vence ou cairá. Sim, se vence o Nirvana será seu (...) E se cai, ainda assim não cairá em vão; os inimigos que matou na última batalha não voltarão à vida no próximo nascimento que lhe tocará» - H. P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, fragmento 2
«O guerreiro destemido, com o precioso sangue da sua vida escorrendo das suas profundas e abertas chagas, atacará o inimigo, expulsá-lo-á da sua fortaleza, e vencê-lo-á, antes dele próprio expirar.» - H. P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, fragmento 3

A mudança, produto de um esforço empenhado

«Os neurocientistas usam a expressão "armação neural" para descrever o modo como, a partir do momento em que um circuito cerebral é traçado, as suas conexões se vão reforçando através do uso repetido - como uma armação a ser erguida num estaleiro de construção. A armação neural explica por que razão é necessário esforço para alterar um padrão comportamental, uma vez estabelecido. Mas com novas oportunidades - ou talvez apenas com esforço e consciência - podemos definir e reforçar um novo trilho» - Daniel Goleman, Inteligência Social, Parte 3, capítulo 10

A "escravidão" dos genes pode ser vencida. As condicionantes mais sólidas do nosso comportamento podem ser contornadas: o "determinismo" do meio, da educação, da cultura, das crenças e dos preconceitos pode ser posta em causa por um esforço de vontade. É possível (não que seja fácil), mudar. Vontade e esforço continuado são a nossa melhor arma contra (e a favor) de nós mesmos.

sábado, 3 de abril de 2010

A força tranquila

«o uso eficaz de uma ameaça de agressão física implícita não reside na aplicação da força propriamente dita e sim nos mecanismos neurais que sintonizam a resposta mais adequada às circunstâncias. Combina auto-domínio (modular um impulso agressivo), empatia (ler a outra pessoa para avaliar qual possa ser a força mínima necessária) e cognição social (reconhecer as normas operativas numa situação)» - Daniel Goleman, Inteligência Social, Parte 1, capítulo 6

Mas há um senão, requisito essencial nem sempre observado por parte de quem detém o poder do uso da força:

«Quanto mais hábil alguém se torna na aplicação de medidas violentas, mais essencial é uma inibição paralela dos impulsos agressivos» - ibidem

Isto é auto-controlo. Força sob controlo: força tranquila.

A arte e o real

«Como certo crítico de cinema faz notar, "(ainda hoje) a impressão dominante de que isto é real constitui uma grande parte do primitivo poder das formas de arte". Essa sensação de realidade continua a atrair espectadores às salas de cinema porque o cérebro responde à ilusão criada pelo filme com os mesmos circuitos com que responde à vida real. (...) Como postula uma máxima da ciência social "uma coisa é real se é real nas suas consequências". Quando o cérebro reage a cenários imaginários do mesmo modo que aos reais, o imaginário tem consequências biológicas» - Daniel Goleman, Inteligência Social, Parte 1, capítulo 1

As consequências biológicas referidas são reacções cerebrais neuronais ao que é percepcionado, por exemplo num filme. E não só neuronais, mas também físicas, como choro, sudação, contracção muscular, etc. Se uma coisa, independentemente da sua natureza, mexe connosco, ela é real.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Maya / Arte

A verdadeira arte não é mentira nem verdade, é confusão. É exactamente isso que expressa a palavra sânscrita "maya", muitas vezes traduzida por "ilusão", mas também por "arte". O mundo objectivo, nalguns livros hindus e budistas identificado como "maya", é a obra de arte do arquitecto divino de que falava Buda. Mas que pode haver de ilusório no mundo objectivo? A sua impermanência. E deixa por isso de ser real? Não. E a arte também não. (Para outras ilações consultar glossário de Bhagavad-Guitá, entrada "Maya" por António Barahona)

Fluxo (termo do psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi)

«(...) O estado que descrevem recebeu de Mihaly Csikszentmihalyi, o psicólogo que durante duas décadas de investigação recolheu inúmeros relatos deste tipo de desempenho óptimo, o nome de "fluxo". Os atletas conhecem este estado de graça como a "zona", onde a excelência se consegue sem esforço, em que o público e os adversários desaparecem numa maravilhosa e continuada absorção no momento. (...) No fluxo, as emoções não são apenas contidas e controladas; são positivadas, energizadas e alinhadas com a tarefa entre mãos. (...) É uma experiência gloriosa: a característica específica do fluxo é uma alegria espontânea, um êxtase. (...) as pessoas em estado de fluxo ficam tão absortas no que estão a fazer que perdem toda a consciência de si mesmas (...) os momentos de fluxo são despidos de ego.» - Daniel Goleman, Inteligência Emocional, 2ª parte, capítulo 6

Pelos vistos esta história de despir-se do ego não é só "conversa" oriental para ocidental dormir. Obviamente não se fala aqui de misticismo, nem de Nirvana, nem de sentar-se na posição de lótus, mas é uma boa aproximação. Note-se que os exemplos citados por Goleman referem-se a atletas olímpicos, jogadores de xadrez, cirurgiões, engenheiros, gestores e simples empregados de escritório; não de místicos, gurus ou iluminados da meditação. Há que ter a capacidade de não categorizar as coisas sem nelas ter pensado bem e começar-se a vislumbrar o que elas querem dizer; de, ao menos, pressenti-las para lá do que elas dizem.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Visão

«É com o coração que vemos claramente; o que é essencial é invisível aos nossos olhos» - O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

O simbolismo do sacrifício

Abrir mão de coisas boas para alcançar coisas melhores não é para muitos, mas quase todos já o fizemos. Chama-se a isso "sacrifício".
A etimologia de sacrifício é sacer (a mesma de "sagrado"), não admira, portanto, que o sacrifício esteja tão vinculado às práticas religiosas de todos os tempos e lugares. Desde os judeus aos Maias praticaram-se sacrifícios (principalmente animais), como forma de agradar aos deuses, de lhes aplacar a ira, ou de pagar um favor recebido. Se pensarmos bem, ainda hoje o fazemos. Mas o que é o sacrifício? É quando abdicamos de uma coisa valiosa (e que nos custa perder), em nome de uma outra coisa ainda mais valiosa. Quem nunca ouviu contar a história dos 300 espartanos das Termópilas? Todos morreram naquele desfiladeiro para atrasar o avanço dos persas e dar tempo aos gregos de se defenderem. Isto é sacrifício.
Em que medida (colocando agora de lado o sagrado), fazemos nós isto nas nossas vidas? É precisamente quando, dominando um impulso de satisfação imediata de um desejo (comprar algo, por exemplo), nos negamos a nós próprios essa satisfação com o intuito de alcançarmos algo maior. Isto é investir. Requer disciplina, requer fé (na medida em que trocamos uma coisa garantida por outra incerta), e requer inteligência. Todo o investimento é diferido e tudo o que é diferido requer calma, confiança e auto-domínio. O investidor financeiro que aplica o seu dinheiro em acções, pretende trocá-lo (mais tarde e com um grau de incerteza), por várias vezes mais.
Nas sociedades antigas os sacrifícios à divindade eram, muitas vezes, de sangue, e esse é, afinal, todo o edifício do cristianismo. Muito embora o sangue como moeda de troca nos choque, a nós, hoje, o simbolismo do sacrifício é igual. Nesse tempo, como agora, o sacrifício era algo difícil de pagar e cumprir, na medida em que custa e é quase insano perder, abrir mão, abdicar, de uma coisa valiosa. Só um homem com "mão" em si mesmo é capaz de grandes sacrifícios. Só quem tem um horizonte largo de visão consegue ter a capacidade de esperar o fruto de um sacrifício. E geralmente ele chega, cedo ou tarde. Nem é preciso citar livros: quem semeia acaba por colher, pois é da justiça das causas e dos efeitos que assim aconteça. Causa-efeito.
NOTA: para se ter uma ideia clara do valor do sacrifício dos impulsos consultar "Inteligência Emocional", Daniel Goleman: 2ª parte, A Aptidão-Mestra, Controlo dos Impulsos: o Teste do Rebuçado.

Dharma e Tao - a natureza intrínseca

A palavra "coração", tão desgastada pelo uso comum que lhe damos, presta-se a que já não consigamos atinar com o seu significado simbólico, julgando conhecê-la e passando por alto sem a meditarmos. Por isso, para que seja possível entendermos o que se quer dizer com "coração", vejamos, por seu lado "Tao" e "Dharma":

«Onde a grandeza do Tao está presente, a acção surge do coração de cada um» - Tao Te Ching, estrofe 18
«O Tao é a casa do tesouro, a verdadeira natureza, a origem secreta de todas as coisas» - Tao Te Ching, estrofe 62
«Dharma, na sua acepção mais geral, significa maneira de ser, natureza essencial de um ser» - António Barahona, glossário de Bhagavad-Guitá, Assírio & Alvim

Ora, esta "natureza essencial" é o lugar da Harmonia, é pela harmonia que se conhece e caracteriza. A conformidade com esta natureza harmónica é o Caminho; a Harmonia é o Caminho:

«Na vida ele dá à vida o que a ela cabe, e aperfeiçoa o seu Caminho. E, na morte, ele dá à morte o que a ela cabe, e não se preocupa com o que está por vir. Esse coração não se deixa influenciar, nem mesmo pelas mutações e transformações do Céu e da Terra; e mesmo que todas as coisas deste mundo lhe caiam em cima, esse coração não é arrastado, nem é levado à confusão» - Tengu-Geijutsu-Ron
«Denomina-se Caminho seguir a própria natureza» - Tengu-Geijutsu-Ron

Harmonia e conformidade com a nossa natureza intrínseca é conhecermo-nos a nós mesmos. O único conhecimento em que existe possibilidade de não errar:

«Quando um inimigo ataca e eu me sinto seguro, em uníssono com o Caminho, a condição humana está do meu lado como uma armadura de metal» - Tengu-Geijutsu-Ron
«[o Dharma] Transgredido, mata; observado, protege» - Manava-Dharma-Shastra, Código das Leis de Manu, in glossário de Bhagavad-Guitá
«Aproxima-te do universo do Tao e o mal não terá poder. Não que o mal não tenha poder, mas o seu poder não será usado para prejudicar os outros. Não só não prejudicará outros, como o próprio sábio também será protegido» - Tao Te Ching, estrofe 60

Propósito firme

«Um guerreiro só precisa cuidar que o seu propósito permaneça inquebrantável (...) Quando um homem tem um  propósito firme, nem as divindades ou os demónios do Céu e da Terra podem impedi-lo. No que diz respeito às circunstâncias exteriores, ele as confia à acção do Céu. Porém, no que diz respeito ao Eu, é o homem que realiza sozinho a sua própria vontade» - Tengu-Geijutsu-Ron

A protecção

«O amor vence todos os atacantes; é inexpugnável na defesa. Quando o Céu quer proteger alguém, por acaso envia um exército? Não, protege-o com amor» - Tao Te Ching, estrofe 67

O ponto mais importante

«O que importa, tanto na sabedoria como na arte da espada, é conhecer-se a si mesmo» - Tengu-Geijutsu-Ron