Em todas as eras se louvou a resistência à adversidade; a capacidade para enfrentar dificuldades, os elementos naturais, todo o tipo de abismos, feras, monstros alados e marinhos, sejam dragões chamejantes, Hidras, Adamastores, Ciclopes, e por aí fora. Aparte o que tudo isto tem de mítico (no sentido próprio: falso) e simbólico, o fundo essencial mantém-se original, ou seja, a história do enfrentamento, do valor sublime do enfrentamento.
Nas histórias do cancioneiro militar de todas as culturas a arrogância guerreira do desprezo pela morte foi sempre cantado. Num dos mitos germânicos um herói ri-se à gargalhada enquanto lhe arrancam o coração, desprezando a sua própria desgraça. Na narrativa de Alcácer-Quibir um dos pares de D. Sebastião teria dito: "morremos aqui todos", ao que D. Sebastião esporeia o ginete de encontro ao turbilhão da batalha. Na invasão da Polónia pelo III Reich os polacos carregaram a cavalo contra os blindados nazis e o dia comemorativo da Legião Estrangeira celebra também uma rotunda derrota: o dia de Camerone, cidade do México onde umas dezenas de homens enfrentaram milhares de mexicanos até à morte (mais tarde, em Dien Bien Phu, a Legião haveria de escrever uma nova versão de Camerone). Mas o que significa tudo isto realmente? Significa que é no pior da vida, naquilo que nela há de pior, de mais trágico, de mais injusto, infeliz, adverso, é aí que a alma humana mostra o valor, a coragem, o quilate, a nobreza. É isso que todas essas histórias significam. E retomando o nosso tema, a história de Cristo não é das menores. É, na verdade, debaixo das chicotadas, dos pregos da cruz, das lançadas, do sangue vertido, que ele se afirma como deus. Sem esse caudal de sangue não haveria (aos nossos olhos - quer nos agrade ou não), nenhuma divindade nele. Porquê? Que significa tudo isso além de remissão, justificação, perdão e sacrifício? Simboliza um magnífico desprezo pelo inimigo e pelo ódio com que ele ataca e nos tortura. Significa que perante a morte (a própria morte), a desfiguração do nosso corpo, a mutilação da carne, a injúria ao espírito, o desprezo da populaça para com os nossos valores, os valores opostos com que nos identificamos (Cristo ensinou a amar os inimigos, não a liquidá-los), mostramos um desprezo pela adversidade que diviniza. Depois de ensinar a todos o sermão da montanha (cf.) o que poderia Cristo fazer por si próprio? Se ele reunisse uma hoste para se defender dos romanos desmentia-se. Se invocasse os anjos do Céu para o livrarem da espada dos inimigos, que deus era esse? um deus que teme pelo seu corpo (corpo que desvalorizava); um deus que teme a morte física (morte que disse nada ser); um deus que trairia tudo aquilo que ensinara. Não seria mais que um cínico, com belas palavras e lirismos, mas com um apego à carne tão lascivo como qualquer outro de nós.
Cristo - é isto que nele há de notável, porém não único - é aquele que despreza o inimigo (ou mais exactamente, os actos do inimigo) a ponto de nem sequer se tentar defender. É aquele que o vê avançar para si e não foge. É aquele que ouve a sua própria sentença de morte e não vacila. Sentença injusta, porque o seu "crime" não foi outro senão pregar a paz, o amor e a justiça. Não importa que a sentença seja injusta: ele despreza o ódio do inimigo, ele ri-se do mal, não o paga com outro tanto. Não é apenas coerente, é corajoso (fisicamente inclusivé), é magnífico, é nobre e valoroso. Na essência há nele um fundo de valor guerreiro no desprezo pela morte e pela destruição.
Muitos homens são nobres pelo sangue recebido; porém, outros o são pelo sangue vertido.
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